03/02/2014

Beijo gay na novela global

Famosos ativistas das causas gays falam sobre beijo em 'Amor à vida'

Cena romântica protagonizada por Thiago Fragoso e Mateus Solano parou o Brasil na noite desta sexta-feira, 31, no último capítulo da trama


Por Léo Martinez (EGO, no Rio)


Foto: Thiago Fragoso e Mateus Solano em "beijo" no final da novela.
Fonte: Divulgação

A novela "Amor à vida" chegou ao final na noite desta sexta-feira, 31, fazendo história na teledramaturgia brasileira. Protagonizada por Thiago Fragoso e Mateus Solano, a cena do tão polêmico e comentado beijo gay mobilizou todo o país. Pelas redes sociais, em cada esquina, nos bares e restaurantes com seus televisores ligados, todos pararam por alguns minutos para assistir ao desfecho romântico dos personagens Niko e Félix.

"Fiquei surpreso e emocionado. Foi uma coisa linda e graças aos talentosos atores, o Walcyr Carrasco mostrou que o amor independe da opção sexual. Tenho certeza que até os mais caretas e conservadores torceram de alguma forma por esse final feliz. Salve Félix e o Carneirinho", disse o promoter David Brazil ao EGO.

Foto: Carlos Tufvesson. Fonte: Ag.News

O estilista e responsável pela Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual do Rio de Janeiro, Carlos Tufvesson comparou a empolgação das pessoas à Copa do Mundo.

"Há muito tempo não via um final e novela assim. Virou celebração de Copa do Mundo. Fiquei impressionado de assistir com amigos que não seguiam a novela que estavam aos prantos, emocionados. Mauro Mendonça Filho (diretor da novela), que é um craque na sensibilidade da cena, fez esse beijo tão aguardado de uma maneira tão sensível, bonita e romântica. Como de fato é um beijo, a manifestação de afeto entre duas pessoas que se amam. E a celeuma desse beijo foi mais pelo fato dele não ter acontecido até hoje do que acontecer de forma natural como foi. 'Amor a vida' conseguiu pela primeira vez ver o grande público lutando e pedindo pelo beijo desse casal. E isso é o mais importante. Não foram os LGBTS que escreveram para Globo, mas o grande público que pediu esse beijo. Afinal um casal se beija! Simples assim! Confesso que foi emocionante até para mim, que não sou noveleiro. Sei o quanto a cena de ontem significará na vida de tantos e que contribuirá para, quem sabe, muitos 'carneirinhos' não virem 'Felix' pelo trauma da rejeição da família ou pelo preconceito da sociedade. Afinal, estamos falando de amor. Viva a vida, viva o amor!'

Foto: Sheila Veríssimo.
Fonte: Isac Luz/EGO
Eleita a Miss Brasil Gay 2013, Sheila Veríssimo (foto acima) também comentou a cena e elogiou a iniciativa do autor: "Assistimos de casa uma história homoafetiva pura, sem maldades ou malícias. Era tudo muito natural e por isso funcionou bem na televisão. Não vejo como uma revolução social e sim uma evolução da nossa sociedade. Foi uma conquista para todos nós que somos gays e lutamos por uma igualdade."

Foto: Ex-BBB Ariadna Arantes.
Fonte: Isac Luz / EGO

Trabalhando e estudando na Itália, a ex-BBB e transexual Ariadna (foto acima), contou ao EGO que as cenas de Thiago e Mateus foram bastante comentadas entre os brasileiros que moram no exterior:

"Estava mais do que na hora do Brasil dar esse passo tão importante na cultura. Os homossexuais também fazem parte da história da humanidade e não poderiam ser ignorados para sempre. O amor não tem sexo e nem fronteiras e falamos aqui na Itália sobre como os atores conseguiram transmitir isso para os telespectadores da novela. Era de fato uma história de ficção bem próxima da realidade", relatou.

Foto: Amin Khader e o repórter do CQC Guga Noblat. 
Fonte: Arquivo Pessoal

O humorista Amin Khader, que já protagonizou cenas de beijos bem humorados durante suas aparições em programas na TV, analisou os detalhes da cena: "A gente fica esperando um beijo mais quente, mais cheio de boca e língua, mas estamos falando de dois atores que estão fazendo aquilo por causa das suas profissões e para mim eles representaram bem o que foi proposto."

Para o Superintendente da Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros) do Rio de Janeiro, o Dr. Cláudio Nascimento, a cena do tão aguardado beijo entre pessoas do mesmo sexo teve um gostinho especial:

"O beijo gay tão esperado nas histórias das telenovelas da Globo finalmente aconteceu, numa cena sensível, afetiva, doce e digna. Um beijo cheio de amor, e inspirador. Um marco histórico em nossa luta contra a homofobia e pelo direito de amar quem quiser. Extremamente emocionado. Foi a cena que fez o meu coração explodir de alegria. Emocionado ao ver retratado o nosso afeto com dignidade, respeito e muita serenidade. Uma cena doce e radical", afirmou.

Fontes e referências:

  1. Globo.com. EGO.


29/01/2014

Quando a cor dos segregados não é vista


O Brasil é um país que naturalizou, ao nível das instituições, todo tipo de segregação: racial, étnica, classista, de gênero, regional, capacitista… Crianças aprendem a classificar, ignorar ou odiar seres humanos em suas próprias casas, nas ruas, nas escolas, e crescem para replicar inadvertidamente ou propositadamente esses ensinamentos. Mas somente os que sofrem tal apartação percebem isso.

Foto: Campanha Rio sem homofobia. Fonte: Governo do Estado do RJ

Há 10 anos o pesquisador Luís Mir publicou um livro que evidencia o estado das coisas nesta nação que se quer democrática, chamado “Guerra Civil: Estado e Trauma”: os nossos índices de violência são epidêmicos, dignos de conflitos nacionais; as nossas favelas são como campos de concentração, espaços de marginalizados na sociedade racista, que não aceita a existência digna desse outro e, por meio do Estado promove a exclusão de grande parcela da população.

Os diversos feminismos que adotam e aplicam o conceito de intersecionalidade, criado pelo Feminismo Negro, reconhecem e denunciam a realidade degradada pelas discriminações multiplicadas pelas diferentes identidades sociais das pessoas, e felizmente têm se tornado mais populares no discurso comum de quem reflete criticamente sobre tudo isso que aí está: as opressões se entrelaçam e se potencializam de formas perversas, quando há dificuldade no acesso a ensino de qualidade ou até mesmo abandono das escolas (outro nome para expulsão), decorrente de abusos constantes; quando se é preterido(a) em uma seleção de emprego porque o(a) concorrente se enquadra nos padrões valorizados pela sociedade; quando se é assassinado(a).

As propagandas com gente considerada bonita não me desmentem: maciçamente brancas em um país massivamente negro.
Gente é segregada não apenas por ser negra, mas por ser mulher negra; não apenas por ser mulher negra, mas também por, comumente, morar em uma periferia, por ser pobre, por eventualmente expressar uma orientação sexual não hegemônica, ou por, em alguns casos, vivenciar uma identidade de gênero que não se restringe à socialmente atribuída.

Para além das violações diárias de direitos, quando se fala de pessoas trans — tal como ocorre com outras dimensões da diversidade humana — é rotineiro se ignorar que elas vivenciam uma diversidade identitária e de sociabilidade, tal como quaisquer outras pessoas. Limito-me neste texto à questão das pessoas negras trans, parcela invisível e evidentemente significativa da população transgênero brasileira.

Fui indagada certa vez sobre a situação das pessoas trans negras neste país, e posso sintetizar a resposta em dois fatos: como pessoas negras, elas são violentadas pelo racismo estrutural, e quando se pensa em uma pessoa trans, geralmente se remete à imagem de uma mulher trans branca, apesar de a maioria ser negra. O racismo e o sexismo funcionam no contexto da transfobia maximizando o apagamento das identidades, das necessidades, e mesmo as existências, de negras e negros trans.

Ao mesmo tempo, a diluição das particularidades das pessoas trans no conjunto político-histórico formado por Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros e Intersexuais (LGBTTTI), no contexto de uma dependência ainda patente dos movimentos trans com relação aos outros (financeira, organizacional, ideológica), pouco tem incentivado uma parte considerável das mulheres trans a se reconhecerem como integrantes de movimentos de mulheres, tampouco tem engajado pessoas trans negras a se reconhecerem no âmbito dos discursos de Consciência Negra e Negritude.

Por outro lado, os novíssimos movimentos negros, feministas e trans, preponderantemente online e independentes das militâncias orgânicas ou das instituições acadêmicas, têm possibilitado, senão estimulado, intensas reflexões sobre as interações de suas pautas, de suas gentes; e têm mobilizado a população a repensar seu status, a construir novas estratégias de enfrentamento — discursivas e práticas — ao status quo adverso.

Esses(as) novos(as) militantes e pensadores(as) não se prendem às antigas caixinhas, podem lá ter suas caixas, mas é notável que, inclusive em função da natureza dinâmica de seu meio de comunicação, a internet, elas precisam ser desmontadas com frequência para continuarem tendo alguma importância social.

Ao nível individual, os desafios de ser mulher negra trans, que começam com a insistência coletiva em negar ou ridicularizar a dignidade de ser e se aprofundam no impedimento de avanços significativos em termos educacionais e laborais, são enfrentados com a ousadia de se valorizar a própria identidade, de criar espaços alternativos de diálogo e de buscar conhecer as histórias daquelas que nos antecederam. Elas que corajosamente criaram possibilidades de existência em conjunturas mais adversas, mesmo que não lhes fosse permitida qualquer ascensão socioeconômica, reconhecimento social ou civil.

É por tudo isso que o Dia da Visibilidade Trans precisa se lembrar das negras e dos negros que o tornaram necessário.

Fontes e referências: